Oceanos são aliados no combate a doenças como Aids e Covid-19

Oceanos são aliados no combate a doenças como Aids e Covid-19

Texto por: Paula Rodrigues | Ecoa (19 de maio de 2020)

“A Terra é azul”. Faz 59 anos desde que o cosmonauta russo Iuri Gagarin se tornou a primeira pessoa a ir ao espaço em 12 de abril de 1961. De lá, eternizou a frases que viria a ser incansavelmente repetida até hoje. A Terra é, de fato, azul. Precisamente, 70% azul. De volta para o presente, 2020 é o ano que antecede a década em que organizações nacionais e internacionais se voltam exatamente para a preservação desta grande parte do planeta.

Os anos entre 2021 e 2030 serão marcados pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a Década Internacional da Oceanografia para o Desenvolvimento Sustentável. E por mais que pensar em oceanos possa parecer completamente distante da atual situação — de um mundo em suspensão pela pandemia de Covid-19, em que não é possível sequer dar um mergulho na praia mais próxima —, fato é que o que acontece no fundo desse extenso azul de água pode ter muito mais ligação com a saúde humana do que se imagina.

“Sem sombra de dúvidas a biodiversidade marinha é uma grande farmácia embaixo d’água”, afirma Fabiano Thompson, mestre em oceanografia biológica e professor de genética e biologia marinha do Instituto de Biologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Foi durante uma conversa com ele sobre as águas brasileiras que um termo aparecia com frequência: Amazônia Azul — uma região que, segundo a Marinha do Brasil, possui 5,7 milhões de km² de área oceânica.

Para fins de comparação, a região amazônica verde e terrestre que conhecemos, possui 6,5 milhões de km². Desse total, 5 milhões de km² fazem parte da Amazônia Legal, região da floresta que está nos Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Maranhão, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. Dela, é possível retirar a matéria-prima para diversos medicamentos. Da Amazônia Azul também.

“Pode ser uma grande fonte de novos antivirais, antitrombóticos e antimicrobianos para tratar doenças, endemias, epidemias e pandemias, por exemplo” – Fabiano Thompson, oceanólogo e professor de genética e biologia marinha do Instituto de Biologia da UFRJ.

 

Grande descoberta marinha contra o HIV e H1N1

Espongouridina e espongotimidina são palavras grandes e complicadas que pouco ou nada fazem parte do vocabulário cotidiano da maioria dos brasileiros. Porém, até junho de 2018, segundo dados do Ministério da Saúde, cerca de 593 mil pessoas que convivem com o vírus HIV no Brasil dependem da produção desses dois derivados sintéticos de substâncias isoladas de esponjas marinhas.

No final dos anos 1980, elas serviram de base para o primeiro fármaco que conseguiu resultados positivos contra o vírus: o AZT. E, desde 1996, é possível conseguir gratuitamente pelo SUS (Sistema Único de Saúde) a terapia antirretroviral, que reduziu a taxa de mortalidade da doença para 4,8 óbitos por 100 mil habitantes. Com isso, se estabelecia no fundo do mar uma corrida mais silenciosa e menos midiática do que a espacial que levou Iuri Gagarin à fama.

“O que acontece é que muitos organismos do mar, como as esponjas, os corais, as algas vivem fixos. E o fundo do mar é um ambiente muito hostil, de muita competição por sobrevivência, por espaço, comida… E esses organismos não têm capacidade de fuga. Por isso, passam a desenvolver substâncias químicas para se defender”, explica Roberto Berlinck, químico e pesquisador do Instituto de Química de São Carlos da USP (Universidade de São Paulo).

Roberto lista alguns dos efeitos causados por essa atividade biológica: “paralisia, rompimento de glóbulos vermelhos…” Apesar de extremamente prejudiciais para os predadores de organismos que as produzem, para os seres humanos elas muitas vezes costumam apresentar eficiência no tratamento de doenças virais, bacterianas e fúngicas, por exemplo.

Existem alguns resultados positivos na experimentação desses compostos químicos isolados de organismos marinhos em outras doenças epidêmicas, como no caso do H1N1. Um time de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenado pelo oceanólogo Fabiano Thompson passou a estudar cianobactérias marinhas com atividade antiviral.

“Elas produzem moléculas com atividade antimicrobiana e antiviral. Para verificar este potencial, nós isolamos cianobactérias de recifes de corais. Em seguida, estas cianobactérias foram cultivadas no laboratório. A partir destes cultivos foram feitos extratos. A atividade antiviral destes extratos foi demonstrada em vírus H1N1, por exemplo”, explica. O resultado positivo do experimento constatou a inibição de 80% do vírus da doença.

Imagem captada dos Corais da Amazônia pelo submarino do Greenpeace, liderado por Fabiano Thompson Imagem: ©Greenpeace

 

Potencial de tratamento para novas doenças

Os resultados laboratoriais dessas pesquisas entusiasmam porque são esperanças para possíveis novos tratamentos de doenças que assolam e dizimam comunidades. E se agora você está se perguntando se já testaram alguma dessas possibilidades para tentar frear o vírus da Covid-19, a resposta é sim. Mas são apenas teste iniciais, o que apesar de apresentar os oceanos como fonte de esperança, não existe ainda garantia de respostas eficazes.

“Existe um projeto grande conduzido pela Universidade de British Columbia, no Canadá, em que pesquisadores estão justamente tentando descobrir antivirais que eventualmente possam apresentar efeito contra o novo coronavírus”, conta Roberto Berlinck. O químico passou 20 anos trabalhando em conjunto com cientistas da instituição canadense.

Em um desses estudos, conseguiram isolar uma substância de uma esponja chamada Axinella cf. corrugata que ocorre no Brasil e apresentou atividade contra a SARS (Síndrome respiratória aguda grave), em 2007. Agora, com o surgimento do novo coronavírus, o químico retomou o contato com os colegas pesquisadores canadenses para falar sobre a substância.

“Conversamos sobre a possibilidade dela reagir ao novo coronavírus. Eles demonstraram interesse em explorá-la mais. Mandamos junto com outras substâncias que tínhamos em nosso laboratório que também apresentaram atividade antiviral”, conta. As pesquisas por lá, por enquanto, seguem sem nenhuma novidade.

No Brasil, as pesquisas marinhas andam em passos lentos. Apesar de existirem diversos nomes importantes envolvidos na área, a evolução esbarra em um fator: dinheiro. Ou melhor, a falta dele.

“A parte da biotecnologia marinha precisa ser reforçada para um remédio estar na prateleira. Isso requer primeiro a coleta do material em áreas de difícil acesso, em que é preciso de submarino ou robôs. Depois, precisa de laboratórios equipados para fazer os testes iniciais. Depois disso existem muitas etapas. Só que para conseguir realizar tudo isso é necessário contar com gente formada e capacitada, mas as pessoas estão indo embora, muitos cientistas brasileiros estão indo embora porque aqui, cada vez mais, o investimento em ciência vai diminuindo”, explica Fabiano Thompson.

 

Bactéria marinha para realizar os testes do coronavírus

Antes mesmo de cientistas tentarem encontrar alguma solução para o novo coronavírus em organismos marinhos, o oceano foi um dos principais aliados para que a humanidade conseguisse identificar doenças como a Covid-19.

Na década de 1980, Kary Mullis, um bioquímico estadunidense criou uma das mais importantes técnicas para a humanidade: a PCR (reação em cadeia da polimerase). Com ela, foi possível realizar um processo de esfriamento e aquecimento de amostras de DNA, que acabam por ampliar ou copiar diversas vezes uma sequência de DNA.

E por que isso importa? Porque isso proporcionou a possibilidade de realizar análises de DNA em pequenas amostras de fiapos de cabelo ou gotículas de saliva, por exemplo, o que é essencial para a comprovação de testes de paternidade, medicina forense e testes de doenças infecciosas, para citar alguns exemplos.

O bioquímico inclusive foi premiado, em 1993, com um Nobel de Química. Mas para chegar até esse momento, ele contou com ajuda do oceano. Isso porque, durante os testes in vitro, é preciso superaquecer a amostra até 95ºC com ajuda da polimerase, que na verdade é uma proteína. O problema é que Kary Mullis começou os testes utilizando uma enzima que só aguentava temperaturas até 37ºC. Quando exposta a temperatura maiores, era destruída.

E aí vem a grande descoberta da água: uma nova enzima isolada de uma bactéria, com nome científico de Thermus aquaticus, que vive em fontes termais embaixo d’água. Descobertas pelo microbiologista Thomas Brock em Yellowstone, nos Estados Unidos, duas décadas antes de ser inventada a técnica PCR. A resistência à água quente foi o necessário para os cientistas entenderem e comprovarem que ela conseguiria manter-se intacta ao superaquecimento laboratorial para realizarem a PCR, a principal maneira para obter o diagnóstico do novo coronavírus hoje.

A fotógrafa Bárbara Veiga reuniu imagens e histórias de expedições marinhas no livro “Sete Anos em Sete Mares”, publicado em 2019 Imagem: Barbara Veiga/Divulgação

 

A importância da preservação

“Os oceanos representam essa fonte expressiva de biodiversidade, de produção de oxigênio. São reguladores do clima: absorvem 90% do calor do planeta, recolhem 30% do dióxido de carbono e fornecem 50% do oxigênio que a gente precisa. A qualidade dos oceanos é indispensável para manutenção do planeta, e, sendo assim, apresenta-se indispensável para saúde humana”, diz Ana Paula Prates, doutora em ecologia marinha.

Importante regulador da temperatura atmosférica, os oceanos sofrem – e muito – com a crise climática. A falta e cuidado com o planeta em terras firmes, ressoa nas águas. Em março de 2019, cientistas da Universidade de São Paulo passaram a monitorar o que chamaram de “um dos eventos mais graves desse tipo já documentados no Brasil”, referindo-se a um branqueamento em massa de corais no litoral norte de São Paulo.

Causada pelo aquecimento global, que elevou a temperatura da água na região a 33ºC (a média para a época era 27ºC), a perda da cor marcante dos corais é também um sintoma de que aquele organismo está perdendo capacidade de se alimentar e produzir energia. Este é um processo que dá início ao que pode ser a morte dos corais, o que significaria a morte da “casa” de boa parte da vida marinha. Estima-se que uma em cada quatro espécies marinhas — incluindo 65% dos peixes — dependa dessas regiões para sobreviver.

Foi por entender a importância dos oceanos para o equilíbrio da Terra que Ana Paula passou a atuar com preservação marinha em 1999. Atualmente, é conselheira de um grupo chamado Liga das Mulheres pelos Oceanos. Criado pela fotógrafa Bárbara Veiga, pela bióloga Leandra Gonçalves e a jornalista Paulina Chamorro, o projeto reúne 300 mulheres de diferentes campos de atuação com intuito de discutir e questões relacionadas ao mar.

“A ideia é usar plataformas de mulheres diferentes, com experiências diferentes. Temos cientistas, comunicadores, artistas, para falar das questões que nos preocupam, que vai desde a poluição marinha, até superexploração de minerais, a pesca ilegal ou a sobrepesca e as mudanças climáticas”, conta Bárbara.

A fotógrafa atua há quase 20 anos na preservação desses espaços. Ao todo, foram sete anos em alto mar entre trabalhos de fiscalização e conservação. Em 2019, lançou o livro “Sete Anos em Sete Mares”, em que reúne histórias contadas em primeira pessoa sobre o que viveu no mar. “Tudo pra mim se fortaleceu”, diz Bárbara. “Eu já tinha esse amor pela água, mas você estando lá, no lugar, vendo a gravidade do problema, vendo que não existe autoridade que proteja espécies marinhas em extinção, por exemplo, é muito forte. Mas existe uma dificuldade de informação, de comunicação para que essa conectividade aconteça e as pessoas passem a visualizar melhor a importância dos oceanos na vida delas”, diz Bárbara.

São esses os exemplos de atividades humanas que interferem em ambientes marinhos de forma tão rápida a ponto de organismos não conseguirem se adaptar às novas condições de vidas necessárias para sobrevivência no fundo do mar.

“Os organismos marinhos possuem diversas utilidades, mesmo cosméticas”, explica Ana Paula, referindo-se a produtos como xampus a base de algas marinhas. “Usa-se coral para fazer enxerto em osso durante operações odontológicas, de mandíbula. A gente vê cada vez mais potencialidade. Oceanos são ambientes tridimensionais, com profundidade e características distintas que possuem organismos importantes para nós e para o planeta.”

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